
Neste primeiro podcast adentramos o espaço aural de estúdios e teatros em contraponto com a prática de campo da gravação do folclore. Contextualizemos o tempo histórico onde começa esta narrativa lendo um trecho do texto de Morton Marks para o encarte da edição norte americana do projeto The Endangered Music Project, coordenado por Mickey Hart e Alan Jabour na Biblioteca do Congresso Americano.
Retomando a distinção de Herman Helmholtz entre ruido e música: a música é expressão de vibrações periódicas de corpos sonoros. Aqui analisaremos a dialética entre som e silêncio na moderna paisagem do mundo urbano.
Na história aural brasileira ocorre um movimento de corpos sonoros partindo do campo para cidade. O pesquisador Álvaro Carlini entrevistou o músico Martin Braunwieser, membro da Missão de Pesquisas Folclóricas, antes de seu falecimento em 1991, perguntando sobre o equipamento usado na gravação.
A aparelhagem que vocês utilizaram para a gravação dependia de energia elétrica?
Braunwieser - Sim, quando tinha energia elétrica era mais fácil. Quando não havia eletricidade, usávamos um gerador que levamos de São Paulo. Era um gerador muito barulhento, fazia um ruído enorme. Às vezes, ele teve de ficar muito perto da máquina de gravação, e ela acabava registrando todo o seu barulho. Mas o que é que se podia fazer? É claro que a melhor gravação se fazia em um lugar onde não havia barulho. Aí ficava bom. Mas isso nem sempre foi possível; tivemos de gravar algumas vezes sem pensar muito...
No início da fonogramação do folclore faltava rede elétrica para gravar. Por essa razão, Benedito Pacheco, técnico da Missão (1938), diz:
“Em muitos lugares eu tive que usar o gerador, quase todos os lugares, também no campo só tinha que usar o gerador”.
E mais ainda, nos explica como era o procedimento comum do dia a dia de gravação de campo.
Antonio Ladeira viria me auxiliar nisso, [...] porque o equipamento era pesado, cerca de... Quase uma tonelada [...] então eu montava tudo no local onde fosse necessário para a gravação [...] em alguns casos, nós púnhamos o microfone no pé, mas em via de regra, eu achei uma coisa interessante, de acordo com o andamento da coisa, que o Braunwieser se fizesse o portador do microfone [...]
Uma gravação era, portanto, um fruto colhido do conjunto de gestos partilhados entre Benedito, Antônio e Martin - técnico, contrarregra e músico. Gestos de apanhar o som do solista e do coro a céu aberto.
CD, Faixa 16, O meu loro não fala. Coco de embolada, Manuel Luis da Silva, solista, Patos, Paraíba, abril, 1938.
Carlini confirma na entrevista com Martin algumas memórias sobre formas de fazer a gravação.
Durante as gravações era o Sr. quem ficava com o microfone?
Braunwieser - Geralmente sim. Não fiquei com o microfone somente em algumas oportunidades. Deixava o microfone parado quando a pessoa podia sentar. No Teatro Santa Isabel, por exemplo, durante a gravação de um Bumba-meu-boi, eu arrumei uma espécie de estante e pendurei lá o microfone. Eles cantavam no palco e eu ficava sentado fazendo o controle de gravação junto com o Pacheco.
Missão de Pesquisas Folclóricas, CD 1, Faixas 8 a 13, Bumba meu boi, 18/02/1938.
Já com os carregadores de piano, fiquei com o microfone e caminhei junto com eles. Eles não sabiam cantar sem carregar o piano [...] foi assim que aconteceu: caminharam pelo palco do teatro, carregando o piano e cantando.
Missão de Pesquisas Folclóricas, CD 1, Faixas 1 a 7, Carregadores de piano, 18/02/1938
A memória de Martin lembra as gravações feitas no Teatro Santa Isabel no Recife, Pernambuco. Benedito Pacheco conta que
“em alguns casos raros, nós usamos um Teatro Municipal”.
A missão de campo usou o teatro lírico do Recife como espaço aural de gravação para isolar o som dos ouvidos da cidade.
“O Saia que fez esse trabalho político de conseguir esse pessoal (do Xangô), se você pudesse ver o medo que eles tinham de serem presos, ainda mais indo para um Teatro Municipal”.
Benedito narra como o isolamento acústico permitiu gravar uma expressão sonora perseguida pela polícia.
CD Discoteca, Faixa 1, Toada de Euá. Grupo Xangô da Guida, Teatro Santa Isabel, Recife, Pernambuco, fevereiro, 1938.
No CD Eu sou Lia escutamos um som musical para o qual a noção de território cultural é fortemente significativa. Lidamos com este som em espaços mediados pela técnica de sonorização e gravação, em palcos e estúdios contemporâneos.
Neste contexto, o que significam culturalmente os pequenos vazamentos dos intérpretes improvisadores da música popular? Seus pequenos gestos de saudação, de incentivo, de exaltação de prazer e aprovação em uma atividade viva da arte de fazer uma roda de ciranda, por exemplo? O que podemos destacar sobre a transformação do folclore em espetáculo, e do espetáculo procurando reencontrar o instante comunitário da festa?
Missão de Pesquisas Folclóricas, CD 1, Faixa 25, Voa, Voa Gavião, Coco, Brejo do Padres, Pernambuco, março, 1938.
