
Em 24 de outubro de 2000, no jornal A Folha de São Paulo, Pedro Alexandre Sanches cita o selo fonográfico pernambucano Ciranda Records.
“Lia de Itamaracá havia tido oportunidade solitária no mercado em 1977, quando lançou o LP "A Rainha da Ciranda". Apareceu como coadjuvante em projetos da Funarte, mas, em geral, permaneceu por décadas recolhida em sua ilha natal. Depois de uma consagração espontânea na edição de 1998 do festival recifense Abril Pro Rock, vem ressurgindo aos poucos. O CD "Eu Sou Lia" havia sido lançado no começo deste ano pelo selo local Ciranda Records, e só agora ganha distribuição nacional pela independente Rob Digital.”
O etnomusicólogo Michael Iyanaga escreve no texto A musicalidade da ciranda:
De fato, observa-se a singularidade de cada grupo de ciranda, assim como pode-se encontrar diferenças gerais na Região Metropolitana do Recife ou na Zona da Mata Norte. No entanto, em decorrência dos processos de migração humana, a circulação de discos e a troca mútua entre as duas regiões, podemos identificar os traços gerais que compõem o fenômeno que praticantes (e até não-praticantes) reconhecem como “ciranda”.
Se alguém hoje, que não conhecesse a ciranda quisesse conhecê-la, teria basicamente duas opções: ir a um “show” de ciranda ou escutar/assistir a uma gravação. As gravações de áudio ajudam inclusive os ensaios dos músicos, que podem ouvir os discos já gravados para conhecerem ou lembrarem de arranjos e melodias. Mas a circulação da ciranda mediada por gravações – ciranda records – tem uma história recente, basicamente ligada ao disco de alta fidelidade.
Antes do LP e do compacto, nos anos 1940, nas gravações de 78 rotações, o gênero ciranda remete à música erudita como nesse arranjo de Villa-Lobos para piano de Passa, passa gavião.
Quando a ciranda começou a ser gravada em discos, o grande nome era Antônio Baracho, conforme lembra Manoelzinho Salu, da Ciranda Nordestina:
Ciranda era uma coisa que muita gente gostava. Ela começou a cair dos anos [19]90 pra cá. Mas nos anos [19]70 e [19]80, ciranda tinha fama. Quando você, no começo dos anos [19]70 tinha Baracho na atividade, que foi o maior cirandeiro de todos os tempos... Que era quando você tinha a ciranda lá em dona Duda, tinha a ciranda do Pátio São Pedro... As pessoas tinham o hábito de ir. E aí tinha muito cirandeiro bom, como mestre Custódio, Geraldo Almeida, seu João da Rosa Amarela, tudo cirandeiro que já foi embora. O que tá vivo é Geraldo Almeida [da Ciranda Imperial]. (Dossiê INRC da Ciranda em Pernambuco, p27)
As cirandas foram gravadas em LPs na época dos festivais organizados pelo poder público pernambucano a partir do início dos anos 1970. Gravado pelo técnico de som Hercílio Bastos, trabalhador referenciado dos estúdios da Rozenblit desde 1967 até 1980, foi lançado em 1972 o LP Vamos cirandar. Na contracapa, o poeta e radialista Ademar Paiva escrevia:
“este elepê é o negócio mais sério e mais autêntico bolado por Nelson Ferreira nesta década de setenta”.
Em 1976 foi lançado o LP Baracho e seus cirandeiros, gravado ao vivo pelo técnico de som Aluízio Melo no Pátio de São Pedro para a gravadora independente Cactus, do Recife. Cristina Andrade, mestra da Ciranda Dengosa, lembra como eram os festivais no Pátio:
No Pátio de São Pedro toda sexta-feira tinha ciranda. No Pátio de São Pedro a ciranda começava na quarta-feira a programação, lá era uma agenda cultural. (Dossiê INRC da Ciranda em Pernambuco, p131)
Gravado por Hélio Ricardo Rozenblit, em 1977 é lançado o LP Rainha da ciranda, de Lia de Itamaracá. Lia também era frequentadora assídua do Pátio de São Pedro:
menina era tanto cirandeiro que tinha participado desse festival, era ciranda de Barbosa, ciranda de Geraldo de Almeida, era Biu da Guabiraba, era Duda. São muitos os cirandeiros que tem em Recife, todos eles faziam concurso de ciranda no Pátio de São Pedro. (LIA DE ITAMARACÁ, Apud. FRANÇA, 2011, p. 106).
A ideia de realismo e autenticidade do sonoro cerca todo o projeto fonográfico de alta fidelidade da ciranda gravada nos anos 70.
No LP de 1972, o texto de Nelson Ferreira aponta que:
“para que sentíssemos, realmente, o ambiente delicioso da Ciranda partimos para a mais pura autenticidade, buscando os seus próprios instrumentistas, os seus rudes cantadores, respeitando-lhes o costumeiro linguajar, sem preocupação outra senão a de referendar, no mais elevado sentido de realismo”.
O LP de 1976 traz a imagem do Pátio de São Pedro lotado de gente cirandando na capa do disco, como testemunho do som que acontecia nos festivais.
O LP de 1977 traz o testemunho de Lia para dentro do disco, em uma entrevista com o produtor e pesquisador Oziris Diniz, que coloca em perspectiva histórica a expectativa da Rainha da Ciranda sobre seu primeiro disco.
Na década de 1990, após o surgimento do “Movimento Manguebeat”, marcado pelo impacto dos discos Da Lama ao Caos, de Chico Science e Nação Zumbi, e Samba Esquema Noise, de Fred 04, a ciranda reapareceu nos meios de comunicação. A força da ciranda na cena popular pernambucana, perdida após o fim dos festivais dos anos 70, de acordo com a narrativa de Lia, talvez tenha sido mostrada no momento do seu “retorno” aos palcos, quando foi incluída pelo Movimento Manguebeat no elenco do festival Abril Pro Rock em 1998.
À partir de então, os meios de amplificação sonora de palcos, sistemas de iluminação e todos os processos mediados dos espetáculos de massas fazem parte do mesmo ecossistema da ciranda de Lia. Dentro desse ecossistema complexo é que nasce o CD “Eu sou Lia” da Ciranda Records, gravado ao vivo no Centro Cultural do Banco do Brasil, como parte do evento Vozes do Mundo, promovido pelo musicólogo Carlos Sandroni, no Rio de Janeiro em 1998.
Nas palavras do etnomusicólogo Michael Iyanaga, o fenômeno sonoro da ciranda – ou seja, aquilo que uma gravação sonora registra – não é apenas som, pois envolve um universo extenso de instrumentos e estruturas musicais, conceitos, movimentos e poesia. Nós acrescentamos aqui que também a figura histórica do acadêmico, seja a de Iyanaga ou a de Sandroni, assim como a dos técnicos de gravação e sonorização, layout e fotografia, também trabalharam para que todo esse universo dos cirandeiros se constituísse em discos para a escuta atenta, informada e musical da ciranda.
