
“Entra no ar Café com Letra (SIC) ao som da belíssima composição do poeta Hermínio Bello de Carvalho (HBC). Além de ser, sobretudo poeta, Hermínio é também compositor, teatrólogo e animador cultural apaixonado pelo Brasil”.
Hermínio, como poeta, sempre manteve seu ouvido atento para a tecnologia. Nos anos 60 e 70, o equipamento de áudio da alta fidelidade, especialmente com o advento da estereofonia, viu surgir um outro público da música gravada. O fenômeno era global: estudantes universitários das camadas médias da sociedade, onde aparelhos de som eram hábitos domésticos, consumiam uma mistura sonora erudita popular ao redor do mundo.
“Eu vi uma experiência dessas que você falou nas faculdades americanas. Fiz uma excursão de três meses nos Estados Unidos atuando muito em campus universitários. Achava muito bonito na hora do almoço, tinha um sistema de som maravilhoso, os poetas vinham e diziam seus poemas, outros cantavam, outros acoplavam música com violão atrás, tocando Bach ou Villa-Lobos. Isso eu também acho um exercício poético muito violento” (HBC em entrevista ao programa Café com Letra, 1979)
O exercício ativo da escuta fez com que o poeta Hermínio Bello de Carvalho pedisse que os técnicos de masterização de áudio do CD Sem Jacob, com Jacob (1999-2001) afinassem o som das fitas magnéticas originais. Como o programa de áudio passou por diferentes máquinas, uma de gravação entre 1968-1969 e outra de reprodução em 1999, não manteve a afinação (pitch) do evento original gravado. Sob a orientação do poeta, que estranhou o timbre de voz de Jacob e Cartola no master digital ouvido em 1998, realizou-se uma correção de afinação avaliada pelo crivo auditivo de sua memória afetiva.
HBC - Vamos deixar a sala onde Jacob estava tocando para surpreendê-lo no estúdio de sua casa entrevistando e acompanhando o divino Cartola. (Faixas 07 e 09 do CD)
Cartola – O Sim, aconteceu o seguinte: eu tinha a falecida, minha mulher, muito boa pra mim e Deus levou.
Jacob – Como é que ela se chamava?
Cartola – Chamava-se Diolinda. Era muito boa pra mim e Deus levou. Eu aborrecido fiz esse negócio.
Jacob – Sim, que ano foi, mais ou menos?
Cartola – Sim é de (19) 48 a 50.
Jacob – Fita no meus olhos?
Cartola – Fita nos meus olhos é mais antigo. Deve ser de (19) 36, mais ou menos
Escreve Hermínio no encarte do CD publicado em 2001 pelo MIS-RJ:
De uma pré-copiagem em DAT (Digital Áudio Tape), retornamos às fitas originais (fita de rolo de ¼’ gravada em 7 ½ IPS). Os serviços de recuperação de fitas analógicas, com pré-amplificadores valvulados, resultaram numa edição computadorizada que não excluiu a pesquisa de gravações originais de Jacob para manter-se a fidelidade à sonoridade única que extraia de seu instrumento. A avançada tecnologia, aqui aplicada, não conseguira, contudo, driblar as manhas de Jacob, que ora se afastava do microfone, ora dava ordens aos seus músicos, ou fazia comentários que nos permitimos, por sua originalidade, conservar alguns deles.
“Valsa n úmero 1 de Durand” (Jacques Durand 1865-1928).
Conservar, manter ou apagar um programa de áudio gravado é quase sempre uma prerrogativa do produtor ou diretor musical de um projeto, embora haja dissenso. Conta Hermínio no encarte escrito para o CD Sem Jacob, Com Jacob, como era enfático o modo de falar do chorão: “Gravar? Não, não pode!”. O poeta segue narrando a relação de Jacob e seu bandolim com a gravação.
“Uma pequena triscada (nota falsa) de seu bandolim era suficiente para querer suprimir faixas absolutamente deslumbrantes de um LP. Ranzinzices. Mas, convencido [por HBC], já cúmplice e de voto vencido, comentaria depois para eximir-se de críticas – isso é coisa daquele poeta maluco”.
Poetas compositores são vozes ativas no território sonoro das gravações musicais. Norival Reis, diretor técnico de gravação da Continental conta, em documentário da TV Maxambomba, nos anos noventa, memórias poéticas do uso das tecnologias.
Eu sempre fui técnico de gravação profissional – e amarrava os outros na escada também? É, amarrei o Orlando, como é o nome dele? [Orlando José Correia (1928 —2002) foi um mecânico e cantor de música popular brasileira]. Oh Orlando! Fica aí parado Orlando, pelo amor de deus, pra gente acabar isso. Ele cantava bem! Daqui a pouco, ele tá lá no fundo do estúdio. Tinha uma escada, que o pintor estava pintando o estúdio, essa escada de abrir. Eu botei a escada, botei o microfone dentro e amarramos ele na escada. Ele gravou!
A tecnologia da “escada de pintor” permitiu que Norival mantivesse o mecânico Orlando em posição profissional diante do microfone, coisa que Jacob, em suas gravações domésticas, não fazia. Posturas, como não falar durante as gravações, são práticas culturais do território sonoro de espaços profissionais. Mas, também depende da poesia.
O falecido Hélio Nascimento morava em Niterói. Ele chegou lá no estúdio com uma música: Cena de rua. O nosso estúdio era na Av. Rio Branco, esquina com a Visconde de Inhaúma, no segundo andar. Agora tem um prédio enorme, bonito, mas era um prédio velho na avenida, que tinha seis metros de pé direito, e naquela época o estúdio pra ser bom, tinha que ter um pé direito bom. Desci os microfones, os cabos, lá pra calçada, e gravamos na calçada. Era O Samba é bom assim, Cena de rua carioca.
O estúdio com pé direito alto era importante para acomodar orquestras e solista em uma única situação de gravação. Embora Norival tivesse uma relação poética profunda com as escolas de samba, e, portanto, com a paisagem sonora carioca que buscava expressar na gravação de sua composição com Hélio Nascimento, a tecnologia exigia outra atenção.
Quando eu comecei a gravar era cera de carnaúba. Eu é que polia as ceras, quando comecei com gravação. Eu poli vinte e oito ceras, que ia gravar lá um artista. Tinha uma estufa, parecida com uma geladeira, pra aquecer a cera, pra agulha na hora de gravar cortar mais macio. Vinte oito ceras quentinhas, começamos a gravar com o cara, e sabe que ele destruiu as 28. E disse que não ia errar, que ia ser de primeira. Quando ele escangalhou a última cera eu gritei: Você conseguiu, meu querido! – Tá boa? – Não, as ceras acabaram.
Valores como gravar de primeira, ou seja, o cantor não errar letra, ritmo ou afinação durante a gravação, e obrigar o conjunto a executar tudo do começo, faziam parte, na prática, da tecnologia do território sonoro onde Norival tornou-se compositor popular.
Como começou teu trabalho de compor? Eu era diretor de estúdio da Continental Discos, técnico de gravação. Aí comecei a fazer O Samba é bom assim com Hélio... Não! Antes, eu tinha feito uma marcha que o Rui Rei gravou. Falecido também, Rui Rei. (Canta) A lua se escondeu, o guarda bobeou, eu taquei um beijo nela e ela quase desmaiou.
Norival tem 75 composições referenciadas na discografia brasileira, entre 1951 e 1964, fim das gravações de 78 rotações.
Canta Alice, esposa de Norival:
“Até vestida já me fez mudar de ideia. (fala sobre a composição Até vestida) Isso já tem uns quarenta... nós morávamos... (Norival) mais do que quarenta (Alice) é deve ter uns quarenta e cinco anos. Foi aí que começou a tristeza (tristeza por quê?) Aí começou a ir pra Escola de Samba, essas coisas que mulher adora, né?”
Como técnico de gravação, transitou ao LP de alta fidelidade, mixando os LPs Cartola, cujo material sonoro foi gravado no estúdio Haway, o Estúdio do Seu Luna (William Araújo Luna), em 1974.
Vavá era poeta consumidor de tecnologia.
"Eu gostava muito de ler revista estrangeira e ficava sabendo das novidades que surgiam lá fora. Eu queria fazer as coisas [que via nas revistas], mas os donos das gravadoras não estavam interessados em investir. Nossas condições de trabalho eram bastante precárias, mas eu nem queria saber. Eu queria mesmo era conseguir efeitos de melhor qualidade. Aí eu saía fazendo tentativas e consegui alguma coisa".
Norival Reis é o Vavá da Portela.
“Olha, o João tá segurando aqui um pedestal de microfone, que se fossem os meus braços velhos escangalhados, já tinha caído em cima da minha cabeça”
