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O som perfeito de Cartola

Cartola firma seu canto ao gravar discos com suas composições em LPs de alta fidelidade.




Conta o pesquisador Greg Milner que, para marcar o centenário do momento em que Edison recitou “Maria tinha uma ovelhinha”, gravando sua voz no papel alumínio que girava na máquina falante que invetara, ocorreu uma reunião, em dezembro de 1977, de músicos, acadêmicos, críticos e executivos da indústria musical levantando inquietações sobre o fonógrafo e nossa vida musical. O musicólogo Hugh Wiley Hitchcock, um especialista na história da música dos EUA, abriu a conferência dizendo o seguinte: 

“A indústria fonográfica tem feito discos tão perfeitos que você perde qualquer visão da falibilidade dos humanos. Essas gravações são uma ficção, são perfeitas demais, então quando você ouve um concerto ao vivo você quase se decepciona com o que escuta.” 

Em 1979, quase no final da vida, Cartola deu uma entrevista a seu parceiro Dalmo Castelo revelando sua preferência por dois dos quatro discos que fixaram sua voz para a posteridade: 

“Olha, todo mundo gosta do meu primeiro disco, do Marcus Pereira, né. Bom, eu acho que foi bom porque tinha a voz mais forte, coisa e tal, foi muito bom. Mas eu acho que ainda não foi o bom. Eu ainda não estava ambientado. Ainda não tinha, como é que se diz, a malícia. Eu acho que agora esses dois últimos discos meus são muito mais perfeitos”. 

Todo o programa de rádio onde esta entrevista foi ao ar trabalha o repertório do último disco de Cartola, talvez em respeito por essa “perfeição” que o artista do ouvido atento encontrou em sua vida profissional tardia. Cartola explica em outra entrevista, feita em 1978, o que significava a escuta atenta para compositores populares de sua geração. 

“Desde que nós começamos a fazer shows e a gravar os compositores, a gravar as nossas músicas e a fazer shows, a meninada passou a sentir, a ouvir e a compreender que no Brasil há música, e melhor do que a que eles ouvem, muito melhor. Então um interesse muito profundo da juventude, por exemplo nos meus shows, nos shows de Nelson (Cavaquinho) é só juventude, só rapaz novo, só menino estudante, e eu me sinto feliz com isso. Em ver essa meninada toda, o modo como eles prestam atenção, o silêncio, o respeito. Eu gosto muito de fazer show, porque eu olho o teatro assim, a plateia, eu vejo mais jovem que velho. Se tem uns dois casais de velhos, tem uns dois mil de jovens.” 

Cartola firma seu canto ao gravar discos com suas composições em LPs de alta fidelidade. Os dois primeiros, chamados Cartola, lançados pela Discos Marcus Pereira, em 1974 e 1976. Os dois últimos, Verde que te quero rosa e Cartola 70 anos, pela RCA, em 1977 e 1979.


Antes disso, na discografia brasileira há um registro, Columbia 36509-5, de sua voz em 1940 cantando uma parceria com Carlos Cachaça. Interessante é que no número de catálogo deste disco de 78 rpm, de 8 de agosto de 1940, tem também uma gravação orfeônica de Teiru /Nozani-ná, cantos indígenas anotados em partitura por Heitor Villa Lobos, Columbia 36509-6. A série Columbia que vai do número 36503 a 36510 vem a ser a versão comercial da famosa expedição etnográfica de Leopold Stocowski publicada nos EUA entre julho e outubro de 1941 sob o nome de Native Brazilian Music, volumes I e II.


Então a voz de Cartola aparece em disco de 78 rpm como uma representação do folclore nacional, junto com outros sambas, pontos de macumba, cantigas rurais e arranjos eruditos da pesquisa musical de Villa Lobos sobre os registros de Roquete-Pinto.


O etnomusicólogo Thomas Turino sugere uma divisão analítica entre música participante, aquela feita para que os presentes cantem, dancem e toquem juntos, como um ritual propiciatório da vida em comunidade, e a música de apresentação, onde o objetivo é fazer música para uma plateia. Cartola em sua trajetória de vida atravessa essas categorias indo das rodas de samba no morro de Mangueira aos teatros e auditórios no Projeto Pixinguinha (1977-1978), momento em que produz dois de seus mais “perfeitos” discos. 

“Eu acho que agora eu tô vivendo tudo o que eu devia viver na minha mocidade. Há gente que diz: ah pra você veio tarde. Eu digo não, pra mim veio em boa hora. Talvez na mocidade eu não soubesse aproveitar o que eu aproveito hoje, esse sacrifício que eu passo, essa luta de gravações e shows, essa coisa. Então já tenho idade, já tenho juízo pra saber o que eu quero. Por isso eu me sinto muito bem”. (Cartola, 1978) 

O Projeto Pixinguinha foi uma iniciativa, entre outras, da SOMBRÁS, associação de distribuição de direitos autorais fundada nos anos 70. Se pensarmos na relação entre cultura popular e música de consumo desde o início dos anos 30, e adicionarmos a narrativa acima sobre a história de Cartola, a que conclusão chegaríamos sobre relação entre compositores populares e música de consumo? 

“Você não pergunta isso pra mim, pergunta pra um milhão de músicos, um milhão de compositores no Brasil se algum deles se sente recompensado? (breve pausa, com mais ênfase) Pergunta a um milhão que existe por aí! Não há ninguém recompensado no Brasil. No Brasil, músico e compositor ainda não ganha o que ele merece”. (Cartola, 1978) 

A voz de Cartola só chegou à era dos LPs de alta fidelidade devido a uma comunidade que tinha entre suas práticas a guarda, o resgate e divulgação da música e da cultura popular como estratégia de transmissão de conhecimento. Em uma carta aberta à uma lista de colaboradores em 2006, Hermínio Bello de Carvalho disse:

"Nunca fui pesquisador e, infelizmente, não pude ser a única coisa que ambicionei ser na vida: um educador”. 

Parece que de alguma forma as intenções do Hermínio vão sendo alcançadas. No vestibular da Universidade de Campinas (UNICAMP) entre a bibliografia das provas de 2024 a 2026 estão incluídas 10 canções de Cartola. Todas as faixas pertencem ao universo da alta fidelidade, onde podemos ouvir não só a música, como a voz do compositor e cantor da cultura popular brasileira, Angenor de Oliveira (1908-1980), o Cartola. 


São elas: do primeiro LP, faixa 1, lado A, “Disfarça e chora”, faixa 2, lado A, “Sim”, faixa 1, lado B, “Alvorada”. Do segundo LP, faixa 1, lado A, “O mundo é um moinho”, faixa 3, lado A, “Sala de recepção”, faixa 2, lado B, “As rosas não falam”, faixa 6, lado B, “Cordas de aço”. Do terceiro LP, faixa 4, lado B, “Que é feito de você?”. Do quarto LP, faixa 1, lado A, “O inverno do meu tempo” e faixa 5, lado B, “Silêncio em cipreste”. 



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CRIAÇÃO

Animação e
desenho gráfico:

RENATO TELES

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Locução e
desenho sonoro:

A pesquisa de conteúdo deste site é feita com o apoio da bolsa de doutorado CAPES PROEX, do programa de pós-graduação em história social da FFLCH da USP.

BRUNO TAVARES

Nome da Pesquisa de Bruno Tavares Magalhães Macedo (2021-2025):

Obsoleto contemporâneo. Ouvindo em máquinas falantes uma história do som brasileiro (1911-2011)

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