
Costumamos pensar que os discos são reproduzidos para compor a programação do rádio. A figura que comanda a vitrola em um programa de rádio tornou-se conhecida como disc-jóquei (DJ). Mas neste podcast vamos inverter o sentido das coisas: vamos apresentar o disco como repositório da história do som no rádio. Ou seja, vamos ouvir discos com gravações de programas de rádio.
Ouviremos um programa específico, chamado O Pessoal da Velha Guarda. Quem nos introduz no assunto é Almirante:
“Boa noite, ouvintes de todo o Brasil! Quarta-feira, 21 horas, Champanhe Mônaco, Pessoal da Velha Guarda, quatro elementos dispostos para oferecer aos ouvintes meia hora de recordações preciosas e informações curiosas a respeito de joias da nossa música popular, especialmente de tempos passados.”
Este programa de rádio foi ao ar em 08 de outubro de 1947. O registro era gravado em discos de acetato de 16 polegadas, discos grandes (41cm), que podiam gravar até 15 minutos de programa em cada lado. Antes de terminar um lado, o técnico acionava um segundo gravador, para não perder nenhum trecho do programa de 30 minutos.
O objetivo das gravações não era a publicação dos discos, mas sua audição para realizar o aperfeiçoamento dos programas de rádio pelos seus produtores. Conhecidos como “programas montados”, estes complexos programas musicais contavam com roteiro e arranjos escritos, além da participação ao vivo de cantores, maestros, músicos, locutores e atores narradores.
O programa Pessoal da Velha Guarda tinha arranjos e regência de Pixinguinha, e o texto nacionalista de Almirante defendia um repertório brasileiro tido como antigo no final dos anos 40, mas cujo som gravado provinha de um passado não muito distante, alguns do início das gravações elétricas no Brasil, em 1927.
Esse era o caso de “Passarinho do Má” de Antônio Lopes do Amorim Diniz, o famoso bailarino Duque. A primeira gravação de Francisco Alves no lado B do disco Odeon 10001 é de 1927, e ficou conhecida como a primeira gravação elétrica feita no Brasil. No programa de 1947, o arranjo de Pixinguinha é feito para acompanhar o cantor Déo, conhecido da crítica radiofônica como “o ditador de sucessos”. Déo foi um dos primeiro contratados nos anos 40 da gravadora brasileira Continental, dirigida por Braguinha, que é o letrista de músicas de Pixinguinha, inclusive da primeira versão gravada de Cochichando, interpretada por Déo em 1944 (Continental 15207). Este choro é apresentado no programa de 1947 em versão instrumental, com Pixinguinha e o regional de Benedito Lacerda.
Como vemos, o repertório defendido por Almirante de polcas, xotes, valsas, modinhas, choros, tratadas como as músicas tradicionais de serenatas do passado, são parte da construção de um discurso do radialista, que ajudou a fixar no imaginário coletivo uma história do som brasileiro, ligando Pixinguinha ao som gravado desde o início do século XX. Fascinante é perceber como o som de Pixinguinha atualiza composições musicais, que nos anos 40 o disco elétrico fixa em sua parceria comercial com Benedito Lacerda.
A atualização tecnológica do som dialoga com gêneros musicais e repertórios. Para acompanhar essa história do som através dos discos recorremos à memória dos técnicos e engenheiros de cada geração. No mesmo ano de 1947 dos programas da Velha Guarda, sempre às quartas feiras, ocorriam também as reuniões do Grupo Safira (Sapphire Group). Grupo de profissionais do áudio que fundariam em 1948 a sociedade de engenheiros de áudio AES, entre os quais se encontrava um pioneiro das gravações elétricas, Robert John Callen.
Em depoimento oral à AES em 1971, Robert conta como entrou para o ramo das gravações sonoras pelas mãos do mesmo empresário que se associou a Fred Figner para fundar a Casa Edison do Rio de Janeiro.
“John Osgood Prescott era um empresário discográfico com ampla experiência nas áreas de gravação e produção de registros fonográficos. Em 1926 ele visitou a General Electric, em busca de um engenheiro com conhecimento em gravação de discos elétricos. Após uma entrevista me ofereceu o cargo com um salário de US$75,00 por semana. Isso para mim foi um verdadeiro incentivo porque o meu salário recentemente aumentado na GE era de US$ 27,50 por semana, sem previsão de horas extras. Eu aceitei a oferta e me mudei para Nova York, onde comecei minha carreira de gravação no estúdio da Gennett Records, na rua 39, perto da Quinta Avenida”.
A gravadora Gennett ganhou fama pelas primeiras gravações de Louis Armstrong e outros grandes artistas do Jazz americano dos anos 1920.
No entanto, a gravadora não conseguiu ultrapassar o período de transição para as gravações elétricas, momento de grandes fusões empresariais e de entrada massiva dos meios radiofônicos na indústria fonográfica. Conta Umberto Franceschi que o mesmo fenômeno ocorreu com a Casa Edison, que se tornou a gravadora Odeon do Brasil.
“Uma das razões dessa enorme fusão foi deter o controle do sistema de gravação elétrica inventado pela Western Eletric. Um prenúncio da EMI Odeon, constituída em 1931. A partir de 1926, a Transoceanic Trading Company-Odeon passou a determinar, no mercado brasileiro, o modo de agir que melhor lhe convinha. Pouco depois, se permitiria intervir, diretamente, na escolha do repertório a ser gravado por Figner.”
Robert Callen foi um pioneiro nas técnicas de gravação elétrica. Ele conta como a transição do sistema de gravação e reprodução mecânica para o elétrico tinha de observar processos que respeitassem os consumidores de equipamentos antigos:
“Alguns discos elétricos reproduziam um zumbido áspero, mesmo com o melhor fonógrafo, da melhor mecânica. Logicamente, foi explicado pelo departamento de vendas que existiam pelo menos 15 milhões desses fonógrafos sendo usados em residências, só nos Estados Unidos. Quem poderia gostar de ouvir sons tão estridentes sendo emitidos em sua trompa fonográfica favorita.”
A padronização técnica para a gravação elétrica e transmissão radiofônica teria um marco histórico no ano de 1934, com o simpósio - Transmissão Eletrônica de Música Sinfônica e sua Reprodução em Perspectiva Auditiva.
Trataremos no próximo episódio de suas consequências para a música de Pixinguinha e a história do som brasileiro.
